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Resenha: Hero, de Perry Moore

Se vivêssemos num mundo paralelo no qual as pessoas têm poderes especiais, qual seria o seu? Bem, o meu com certeza seria o poder de fazer o tempo parar toda vez que alguém lê um livro. Dessa forma, não perderíamos tempo com leituras, e antes que você me entenda errado, o que eu quis dizer foi: se não houvesse gasto de tempo durante a leitura de um livro, seria possível ler todos os livros do universo no período de uma única vida.

Faz sentido para alguém?

De qualquer forma, a resenha de hoje será levemente diferente do formato que trago para vocês, porque eu meio que vou problematizar um assunto importante e gostaria de dar início a uma discussão saudável no blog. Calma lá, que a gente do Silêncio Contagiante tem a cabeça no lugar certo e não vamos incorrer no erro da intolerância, seja ela qual for. Por isso, pretendo manter tudo dentro de um ambiente de diálogo controlado, respeitando o posicionamento individual de vocês.

Então, senta, que lá vem textão!

Tudo começou na semana passada, quando a Karla Gessy publicou aqui a resenha do Capitão Feio, uma Graphic Novel que fala sobre a origem do grande vilão das histórias do Cascão. Sugiro que vocês leiam o texto da Karla antes de continuar a ler este, mas, em um resumo apressado, a história mostra como o personagem se tornou mal por conta de toda discriminação que sofreu da sociedade.

Daí eu fiquei pensativo, ponderando sobre a influência da sociedade nas nossas escolhas, especialmente no modo como passamos a nos comportar diante de um grupo determinado. Coincidentemente, estou numa maré de leituras no Kindle, em particular dos livros em inglês que estão na minha fila há algum tempo. Um desses livros era justamente Hero, do Perry Moore. Aproveitando a vibe de super-herói em que eu estava graças à resenha da Karla, resolvi encarar o Hero.

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Preciso abrir um parêntese nessa parte: Eu, Felipe Vlaxio, não sou fã de histórias de super-heróis. Desculpem-me os aficionados, mas se trata de uma pessoalidade minha. Nisso estão incluídos todos os formatos: livros, filmes, séries, cartoons, animés, mangás, HQ’s, graphic novels, literatura de cordel, clips da MTV, comerciais do Mr. Músculo, etc. Nisso NÃO estão incluídos os seguintes tipos de personagens: bruxa(o)s, ninjas, shinigami, lobisomens, vampira(o)s, caçadora(e)s de demônios, dentre outra(o)s componentes de um universo místico que não considero parte do acervo de pessoas com poderes especiais que tentam salvar o mundo de um(a) vilã(o) charmosa(o). Sinta-se à vontade para me fazer mudar o ponto de vista nos comentários, pois não tenho aversão a evoluir na minha opinião se eu concordar com uma outra melhor. Existem pouquíssimas exceções de super-heróis que, com um pouco de esforço, eu gosto(ava) de acompanhar, como o One Punch Man e o Capitão Caverna. E isso é um pouco contraditório, eu sei, mas funciona bem dentro da minha cabeça, então, continuo vivendo, beijos. Dito isto, gostaria de registrar aqui que a história de Hero me deixou muito feliz, de um jeito meio militante, sabe, por isso resolvi usar o espaço do blog para discutirmos sobre ele.

A premissa é simples: Numa versão mais legal do nosso mundo, os super-heróis vivem entre nós e são bem comuns. Seu colega de trabalho, por exemplo, que não para de reclamar nas segundas-feiras, pode ultrapassar a velocidade da luz numa corrida e você nem sabe, ou a garçonete do restaurante que você mais gosta é capaz de erguer duas toneladas de rocha vulcânica com a mesma facilidade com que levanta uma xícara de café. O fato é que nesse mundo existe super-herói para tudo, com habilidades para todos os gostos e a sociedade está acostumada a tê-los por perto para salvá-la.

É meio como o mundo de One Punch Man, de Kick-Ass e de Os Incríveis, em cuja realidade há inúmeros super-heróis, e, no sentido básico, para ser um super-herói você necessita de um registro, tipo para exercer a profissão “legalmente”. Além disso, o autor tomou a liberdade de repaginar o conceito de Liga da Justiça, trazendo na trama personagens muito similares àqueles da DC e da Marvel, com leves diferenças comportamentais para não deixar tudo tão escancarado.

O protagonista da história é Thom Creed, um garoto de 17 anos com capacidade enorme de se envolver em problemas, mesmo sendo um dos melhores jogadores do time de basquete da escola, que leva uma vida bem difícil por conta da má reputação do pai e a ausência da mãe, que os abandonou há alguns anos. Para completar, ele ainda sofre de aleatórios ataques de convulsão quando exposto a situações de estresse, e isso deixa a vida dele um pouco mais intragável, já que por causa desses episódios de descontrole ele é proibido de dirigir e executar outras atividades que possam representar risco para outras pessoas.

Mas o pior de tudo é que Thom Creed é gay!

Percebam que eu utilizei propositalmente a palavra “pior” para sobrepujar os outros problemas enfrentados pelo Thom. Isto porque neste mundo, possuir visão de raio-X, cuspir fogo pela boca e prever o futuro são coisas muito mais naturais do que ser gay. Estou falando sério. Tenha um filho capaz de voar e você será um(a) pai/mãe de sucesso, agora se seu filho escorregar no quiabo, queimar a rosca, dar o toba, emborcar a xícara, se abaixar no pepino, lamber o pirulito ou chupar que é de uva, deus o livre!, você é motivo de desgraça e se torna um pária da sociedade.

Ocorre que estou falando aqui de um mundo diferente do nosso, por isso, existe uma coisa que é ainda pior que a desgraça de Thom em relação ao seu pai homofóbico: a desgraça do seu pai homofóbico em relação ao mundo. Veja bem, conforme patinamos na história, lidando com a raiva interior e a frustração justificada do Thom, vamos descobrindo aos poucos que o pai dele fez alguma coisa no passado que o destituiu da posição de maior herói da Liga e o transformou em desonra para o nome dos heróis, ocasionando na morte de centenas de pessoas.

A partir disso, o livro adquire uma carga dramática que o faz se distanciar das ficções YA comuns. Assim que você assimila que os heróis são pessoas como quaisquer outras, apenas com o diferencial dos poderes especiais, você começa a perceber que cada um deles tem seus próprios problemas, e que esta perspectiva os torna mais humanos, mais factíveis com uma realidade crível. Nesse ponto, o autor foi muito feliz, de sorte que construiu personagens falhos, imperfeitos, com bagagem de vida digna dos filmes de drama da HBO.

O MAIS IMPORTANTE, porém, é que o livro, pode-se dizer, tem um final feliz. E por que digo que isto é o mais importante? Porque é exatamente agora que vamos entrar na problematização do assunto. Estamos conversando, você e eu, sobre um super-herói que é gay e, pasmem!, não é estereotipado, nem sofreu abuso na infância, nem foi estuprado quando adolescente, e ainda por cima terminou a história VI-VO. Agora, sejam sinceros: quantas histórias iguais a essa vocês veem por aí? Podem considerar todos os formatos que listei lá em cima, não tem problema. Corrijam-me, por favor, se eu estiver errado, mas a resposta é que há pouquíssimos exemplos que se encaixam nessa categoria.

O assunto em questão, para ser sincero, é conhecido como uma palavra bem grande, nem tão recente, nem tão antiga, que tem dado muito o que falar nas agendas de todas as minorias. Trata-se da REPRESENTATIVIDADE. Para quem não sabe muito bem o que é, representatividade é quando você consegue identificar personagens específicos em uma história com características claras o suficiente para “representar proporcionalmente” determinados grupos de pessoas, deixando de priorizar apenas a paleta disposta na imagem abaixo, que eu gentilmente batizei de Padrão Chris:

Padrão Chris.jpg
Chris Evans | Chris Hemsworth | Chris Pine | Chris Pratt

 

Representatividade, no caso do universo dos super-heróis, é você parar e se perguntar: Cadê as(os) heroínas(heróis) negrxs, asiáticxs, índias(índios), anãs(anões), gordxs, gays, trans, bissexuais, lésbicxs, assexuais, pansexuais, de gênero fluido, drag queens, drag kings, etc., etc., etc.? Representatividade, meu caro leitor, seria ter representantes de todas essas minorias num nível proporcional ao Padrão Chris, em qualquer um dos suportes supramencionados.

No caso de Hero, temos um super-herói gay, já que o Thom Creed termina por descobrir que possui habilidades fora do comum para curar seres vivos. O gay não representa todas as minorias, obviamente, mas, ao fazer parte delas, consegue passar uma mensagem de representatividade que precisa ser disseminada tanto quanto a mensagem do Padrão Chris. Ainda assim, eu fico me perguntando onde estão os protagonistas gays dentro das distopias, dos romances de época, dos cenários pós-apocalíticos, dos filmes de ação, das invasões de zumbi, etc. Conseguem perceber aonde estou querendo chegar?

Recentemente, eu fiquei muito emputecido com o fato de que Call Me By Your Name, filme baseado no livro homônimo do André Aciman, não entrou em cartaz em NENHUM CINEMA do meu país Manaus. Tipo… Sério mesmo?! A porra do filme foi indicado ao fucking Oscar, mas deus livre a sagrada família manauara de ser exposta a este tipo de degradação dos valores cristãos e dos costumes das pessoas de bem!

Ano passado, por outro lado, tivemos uma grata surpresa com o filme da Mulher Maravilha, que não apenas mostrou a heroína em toda a sua glória, como foi um berro feminista nos ouvidos dos machinhos de plantão. A importância desse filme pode ser percebida por qualquer indivíduo que consiga ter uma visão da sociedade injusta na qual vivemos, e que anseie por mais igualdade entre todos [o fato de a Gal Gadot ter recebido uma mixaria para interpretar o papel da Diana é mais um tapa na nossa cara, portanto, nem vamos falar sobre isso aqui para não virarmos a noite, okay?].

Outro exemplo de hino, quer dizer, de filme é o Pantera Negra, que atualmente está em cartaz [felizmente] em todos os cinemas. Eu fui assistir com algumas expectativas, mas, uáu, eu não esperava levar tanto tiro, minha gente. O filme é poderoso, com um elenco im-pe-cá-vel, um roteiro acima da média e uma fotografia que eu não via nas telas do cinema desde Avatar, em 2009. Não apenas isso, Pantera Negra é também um baluarte da representatividade, que deixou no chinelo muitos blockbusters de super-heróis. A mensagem trazida no filme não foi um grito, foi um estrondo tempestuoso capaz de retumbar até nos ouvidos mais indiferentes. Não estou tietando o longa por acaso. Ele é sem dúvida um dos filmes mais importantes para o movimento negro dos últimos anos, e os efeitos colaterais dele ainda vão ser observados por muito tempo, se é que temos alguma justiça nesse mundo.

Entrementes, você pode vir a me questionar o seguinte: “Vlaxio, os filmes da Mulher Maravilha e do Pantera Negra não foram os primeiros filmes protagonizados por mulheres e por negros, então, por que diabos você está fazendo tanto barulho por nada?”. Em que eu lhe responderei o seguinte: “Elementar, meu pequeno lactobacilo. Lembre-se de que, quando expliquei sobre o que é representatividade, deixei claro que se trata de ‘representar proporcionalmente’. O foco aqui está no advérbio ‘proporcionalmente’, consegue perceber? Ora, para cada Mulher Maravilha e para cada Pantera Negra, existem centenas de outros super-heróis que exalam o Padrão Chris, portanto, a proporção está mais do que discrepante nos dados estatísticos. Desta feita, não venha me dizer, a não ser que você goste de passar vergonha em público, que apenas uma Mulher Maravilha e apenas um Pantera Negra são suficientes para hastear a bandeira da representatividade no universo dos super-heróis”.

Fui claro o bastante?

Agora, voltando ao Hero, eu dei uma leve wikipedizada, e descobri algumas coisas interessantes. 1) Perry Moore foi produtor dos filmes das Crônicas de Nárnia (na verdade, eu já sabia disso, até porque foi assim que eu descobri o livro dele); 2) Em entrevistas, o Moore declarou que escreveu Hero porque ficou muito irritado com a Marvel por conta do fato de que, em 2005, o personagem Northstar foi assassinado pelo Wolverine num dos quadrinhos. Acontece que o tal do Northstar era o personagem GAY mais famoso (e eu nem conhecia) da Marvel, cuja morte covarde, na opinião do Moore, passava a mensagem errada aos leitores, principalmente ao público LGBTQ+ [ou você acha que as gays não consomem HQ tanto quanto os héteros Padrão Chris?]. Justificadamente decepcionado com essa coisa toda, o Moore resolveu, por conseguinte, escrever Hero, a fim de apresentar à humanidade um lado mais positivo de ser um super-herói gay.

O livro foi lançado em 2007, e o Moore tinha pretensões de escrever uma série de livros trazendo o Thom Creed como protagonista. Logo em seguida, o autor anunciou que talvez o livro fosse adaptado para filme, e depois conseguiu ofertas para transformar em série de TV. Àquela altura, o próprio Stan Pica-das-Galáxias Lee abraçou a proposta e decidiu atuar como produtor executivo da possível série. Só que em 2010, a Showtime deu pra trás [cof, cof] e desistiu de continuar a adaptação. O Moore chegou a revelar que tinha recebido novas propostas e que estava analisando as melhores ofertas. Infelizmente, em 17 de fevereiro de 2011, Perry Moore faleceu em decorrência de uma overdose ocasionada pela mistura de remédios que ele consumia por causa de uma cirurgia que fez na perna. A última notícia que se teve sobre uma adaptação de Hero para série de TV foi um boato de que o canal Starz estava trabalhando com o Moore para tornar esse sonho em realidade. Até agora, porém, nada aconteceu.

Para finalizar a resenha de hoje, eu tenho duas coisas para acrescentar: 1) Por favor, editoras brasileiras, traduzam e publiquem Hero em território tupiniquim. A gente é muito carente desse tipo de literatura, e, na minha opinião, Hero tem todas as qualidades para se tornar um best-seller nas livrarias nacionais, além do fato de trazer personagens importantes para esse momento de militância pelo qual passa o país. Afinal, seria ótimo que os jovens gays em fase de aceitação tivessem um exemplo de super-herói que, no mínimo, sobrevive na própria história. 2) Por favor, escritores brasileiros, trabalhem mais a representatividade em seus protagonistas. Não tenham medo de contar uma história em que a menina trans se casa com uma negra lésbica. As combinações são caleidoscópicas e podem alegrar a vida de muita gente. Sério!

Enfim, isso foi tudo por hoje. Dê sua opinião pra gente nos comentários, assim ficamos sabendo o que você pensa sobre a representatividade em pleno século 2018.

Há braços,
Vlaxio.

5 comentários em “Resenha: Hero, de Perry Moore”

  1. Nossa Felipe eu simplesmente adorei sua resenha.
    Concordo com todo os pontos e vírgulas de seu texto e infelizmente ainda falta
    aceitação e respeito pelo diferente na nossa sociedade.
    Um tempo atrás postei no meu Instagram uma resenha sobre ficção científica, um projeto nacional,aonde os protagonistas são mulheres, trans, homossexuais e etc, e tive que ler comentários infelizes lá, quais respondi da melhor forma possível e de um jeito que não alimentasse o troll ou a treta mas fiquei admirada pela mente tacanha das pessoas que se dizem esclarecidos intelectualmente ¬¬”
    Se quiser ler o livro,que super indico, ou conhecer o projeto o site é http://universodesconstruido.com/#!
    Até mais,
    =]

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