Clube do Livro Contagiante

Clube do Livro | VOX, de Christina Dalcher, por Vlaxio

VOX, escrito por Christina Dalcher, foi lançado em 2018 pela editora Arqueiro e é o livro escolhido para leitura coletiva comemorativa de 7 anos do blog Silêncio Contagiante.

SINOPSE

O governo decreta que as mulheres só podem falar 100 palavras por dia. A Dra. Jean McClellan está em negação. Ela não acredita que isso esteja acontecendo de verdade.

Esse é só o começo…

Em pouco tempo, as mulheres também são impedidas de trabalhar e os professores não ensinam mais as meninas a ler e escrever. Antes, cada pessoa falava em média 16 mil palavras por dia, mas agora as mulheres só têm 100 palavras para se fazer ouvir.

…mas não é o fim.

Lutando por si mesma, sua filha e todas as mulheres silenciadas, Jean vai reivindicar sua voz.

Uma recriação apavorante de O conto da Aia no presente e um alerta oportuno sobre o poder e a importância da linguagem.

— Marta Bausells, ELLE


SOBRE A LEITURA

Então… Eu odiei cada momento dessa leitura. Não houve capítulo em que a repulsa no meu estômago não me fizesse querer vomitar. Eu só terminei por conta da nossa leitura conjunta, mas foi um dos livros mais difíceis de ler na minha vida.

Não digo isso em relação à escrita. Não, não, não. Christina Dalcher é uma excelente escritora, inegavelmente. Ela tem todas as qualidades de autores que eu adoro, como Dan Brown e Ken Follett, dentre outros homens brancos cisgênero e heterossexuais no mundo da literatura.

Meu problema todo foi com a história. Essa história que é repugnante, sórdida e intragável, mas, apesar disso, me parece tão próxima de uma realidade não muito distante. A mínima “possibilidade” disso acontecer me deixa amedrontado, deixa meu coração acelerado e fico respirando ofegante.

Entendo que o feminismo não é meu lugar de fala. Ainda assim o livro me causou um impacto muito grande. Mas sequer sinto que tenho esse direito. Por quê? Eis a resposta: Nossa, um homem ficou chateadinho com essa história, nossa, um homem quer atenção porque achou o livro esclarecedor, nossa, um homem pensava que isso nunca seria possível e blábláblá.

Darei um pouco de contexto a vocês sobre minha criação. Eu fui criado e educado por mulheres muito fortes. Minha mãe, minhas tias e minha avó materna. Mulheres independentes, que nunca precisaram de homem nenhum para viver. Para mim, minha avó é uma rainha, minhas tias são princesas guerreiras e minha mãe é uma deusa. Escrevi um livro inteiro dedicado a elas, como forma de apenas começar a pagar por tudo que fizeram por mim.

Contudo, nos últimos anos tenho percebido uma queda na força dessas mulheres. Por causa da religião. Eu sei, sou suspeito para falar de religião, mas deixe-me ajustar: por causa dos homens religiosos que compõem a minha família. Tenho constatado que aos poucos — porém em ritmo significante — as mulheres da minha família, antes mais poderosas do que qualquer homem no universo, agora estão se deixando ficar submissas aos homens da família. Por quê? Simples. Porque está escrito na bíblia.

Infelizmente, não há muita coisa que eu possa fazer para mudar esse cenário, haja vista que elas parecem ter sido possuídas por algum tipo de vírus que as faz se render ao patriarcado, sem perceber que o patriarcado é na verdade o Grande Câncer da sociedade e, enquanto não for erradicado, levará a humanidade à decadência, sendo as mulheres as primeiras sacrificadas.

Em virtude disso, eu encarei a história desse livro como um ataque direto às mulheres da minha família, que eu ainda tenho esperanças de salvar. Não é incomum vermos as próprias mulheres empenhadas em cavar a cova na qual elas mesmas serão enterradas. E não falo apenas das mulheres da minha família, majoritariamente eleitoras daquele projeto de pudim laranja americano. Falo principalmente de mulheres com poder político, como a atual Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que, pasmem!, é uma pastora e, desculpem-me os religiosos, está corrompida pelo patriarcado cultivado pelo Cristianismo.

No livro, eu fiquei particularmente enojado com as atitudes do filho da protagonista contra ela, porque, como filho, eu jamais conseguiria replicar a insolência daquele pequeno maníaco. O pior, contudo, é que o guri “aprendeu” a se portar daquele jeito em relação às mulheres na escola, resultado de uma doutrinação machista e ultrajante, que parece muito distante da realidade, mas não é o caso.

Querem um exemplo disto? O Ministério da Educação enviou uma carta às escolas do país com instruções para que filmem os alunos cantando o hino nacional, enfileirados como soldados, enquanto algum representante da escola lê trechos da carta, e todos terminem com o slogan de campanha do atual acidente, quer dizer, presidente, que eu me recuso a escrever aqui [Fonte: El País].

Não se iludam. A cadeia de eventos que levou à distopia do livro de Dalcher já começou na nossa realidade. Quer dizer, vem acontecendo há milênios. É apenas uma questão de tempo até ser tarde demais. A trama da história se restringe aos EUA, mas é óbvio que o Brasil seria o candidato perfeito a substituir o país do Tio Sam caso Dalcher quisesse expandir sua distopia.

E pensar que tínhamos uma Sociedade Primitiva comandada pelo matriarcado! Quando as mulheres estavam no comando, criaram a agricultura, a medicina, a química, o fogo, a educação, etc., etc., etc. A lista é infindável. A base da humanidade foi solidificada por mulheres, até o que o homem veio para envenenar a perfeição do mundo matriarcal.

Não estou idealizando a Sociedade Primitiva. Mas percebam que nela a mulher exercia papel de igualdade e superioridade ao homem, nunca de inferioridade. E isso não sou eu que estou afirmando. Basta você fazer uma rápida leitura em livros e artigos científicos para descobrir, caso ainda não saiba, que as mulheres são, por direito, as verdadeiras donas da porra toda.

Como homem, assumo como dever reparar as atrocidades dos meus semelhantes genitais. Mas isso tem um limite para uma pessoa só. É preciso que TODOS os homens acordem para o fato de que são versões miniditatoriais de um mal gigantesco e pútrido chamado machismo.

A leitura de VOX me incomodou demais não porque sou um homem que se sentiu ofendido ao ler a história, mas porque sou um homem que só posso concordar com tudo o que a Dalcher escreveu. Eu ainda estou aprendendo. Ainda me acostumando. A sociedade teima em me dar privilégios ridículos que durante a maior parte da minha vida eu aprendi que os merecia sem fazer nada por eles, indiferente ao fato de possuí-los pura e simplesmente porque nasci com o sexo “ideal”.

No melhor dos cenários, apesar de toda a repulsa que a história me causou, o livro serviu de inspiração para mim. Me inspirou a lutar contra isso. Me inspirou a me revoltar contra atitudes iguais à da atual Ministra da Mulher e do Ministro da Educação. Me inspirou a não aceitar as instruções bíblicas quanto à falsa superioridade do homem à mulher. Me inspirou a ser mais empático com minha irmã, minhas amigas, minhas heroínas, que, mesmo dentro da mesma realidade que a minha, levam uma vida muito mais difícil do que eu jamais vou conseguir experimentar.

Mas, sobretudo, me inspirou a ser um homem de verdade, ciente de que as mulheres foram, são e sempre serão melhores do que eu. Não se trata de habilidades físicas, faculdades mentais, conhecimento acadêmico. Trata-se da mulheridade. A configuração transcendental que as torna fortes enquanto frágeis, rígidas enquanto dóceis, sábias enquanto caladas, corajosas enquanto amedrontadas e, acima de todas as coisas, defensoras da igualdade enquanto diminuídas pelo sexo oposto.

Um homem jamais teria essa capacidade.


FICHA TÉCNICA

Título: VOX

Autor: Christina Dalcher

Editora: Arqueiro

Páginas: 320

Ano: 2018

Adicionar: Skoob

Comprar: Amazon

2 comentários em “Clube do Livro | VOX, de Christina Dalcher, por Vlaxio”

  1. ADOREI sua resenha, infelizmente muitos usam a bíblia de forma errada, inclusive para benefício próprio pois se quisessem fazer o certo era somente fazer o q Jesus disse Amar ao próximo como a ti mesmo. Nosso mundo é totalmente machista e não é só os homens tbm tem várias mulheres com o mesmo pensamento e creio q ainda vai demorar para mudar. Só espero nunca vivenciar o mundo igual ao descrito no livro. Valeu pela sua excelente resenha Vlaxio.

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  2. Eu vou chamar esse texto de ‘O Manifesto de um Homem de Verdade: o reconhecimento do poder feminino no mundo machista e de estrutura patriarcal’ e mandar os imbecis lerem essa porra e ficarem quietinhos no seu canto ou se levantarem pelas mulheres de suas vidas. Com certeza, foi incrível!

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